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ASPECTOS PSICOLÓGICOS DA OBESIDADE MÓRBIDA

SYMBOLON, 1999

Grupo de Psicólogos Junguianos.

Simone Marchesini

CRP:08/04760

Falar em "aspectos psicológicos" de uma dada moléstia não tem relação alguma com o estabelecimento de um "perfil psicológico", mesmo porque, o perfil é apenas uma parcela do indivíduo em questão. Todavia, ao considerarmos

o indivíduo obeso mórbido que nos procura para a resolução de sua doença, não podemos nos furtar de observar nas entrevistas de candidatos à cirurgia bariátrica, semelhanças em questões reflexivas ligadas ao sofrimento de ser obeso.

A obesidade mórbida é assim descrita devido às complicações físicas, e porque também não incluir as psíquicas, decorrentes do excesso elevado de peso. De acordo com o Índice de Quetelet, é obeso mórbido o indivíduo que tiver 40 ou mais na pontuação que nos fornece a massa corporal em Kg/m2. Existem casos de indivíduos em que o IMC é inferior a 40, mas que já apresentam complicações que reduzem tempo e/ou qualidade de vida. Quase a totalidade dos pacientes que buscam a cirurgia bariátrica traz seqüelas psicológicas e orgânicas decorrentes do uso de anorexígenos, numa busca circular de emagrecimento. Depressões são desencadeadas, processos ansiosos se intensificam, compulsões alimentares se manifestam e até mesmo o transtorno do pânico marca presença.

O psiquiatra José Carlos Appolinário, Doutor em Psiquiatria pela UFRJ, faz um levantamento de estudos comparados e conclui que não se pode afirmar que os obesos tenham problemas emocionais graves como determinantes da obesidade. Estatisticamente, obesos e não obesos não apresentam diferenças quanto à morbidade psiquiátrica.

Numa outra perspectiva porém, nos perguntamos sobre esse corpo que se enche exageradamente, aumentando sua forma em dimensões inimagináveis e se não haveria ai um vazio de outra ordem, que não o do estômago. E se o vazio não é deste órgão, porque reduzí-lo ? Como conseguir acompanhar essa imagem de crescimento literal que faz com que uma mulher percorra desde a marca dos 60 até os 200 kg? E como compreender que apenas pelo limite também imposto literal e concretamente, a psique desses indivíduos obesos mórbidos, tenham a contenção necessária para abrir mão de seu recurso de equilíbrio: o comer desenfreado que não conhece a saciedade?

A cirurgia cumpre seu papel: possibilita que o controle da ingestão alimentar mude de sede; da vontade egóica para o volume do estômago. De algum modo, a energia psíquica dispendida no estabelecimento do limite do ato alimentar, fica à disposição da psique, podendo tomar forma construtiva ou destrutiva. O conflito em relação ao comer se desfaz. Quebra-se o ciclo ( vontade de comer, ansiedade, ato alimentar, culpa, ganho de peso, arrependimento, perda progressiva da auto-estima, isolamento, depressão ) e a energia fica livre para outro alvo. Mas que alvo?

Dos 72 pacientes avaliados até abril/99, apenas 11 permaneceram em psicoterapia. Uma parcela pequena se põe para operar uma transformação além do corpo. As informações médicas, contudo, nos relatam uma grande porcentagem de indivíduos que se refere a um aumento na qualidade de vida pelo resgate da auto-estima.

Em decorrência da restrição do volume alimentar ingerido e do impedimento da absorção dos alimentos, o indivíduo emagrece sem muitos esforços mentais e sem o sentimento de privação. O vazio se preenche com pouca quantidade de comida e as restricões típicas de dietas hipocalóricas são abandonadas. A ansiedade ligada à possibilidade de recuperar o peso perdido se desfaz mediante a experiência concreta da medida radical que é a cirurgia. A experiência do limite imposto pelo corpo dá à alma um sabor de liberdade. Mas a vida não se totaliza pela forma que um corpo adquire ou pelo conceito que cada um tem de si enquanto Kg/m. As questões humanas permanecem, ou até têm a possibilidade de surgir em busca de resolução depois que o "bode expiatório" sai de cena.

Temos duas categorias de obesos mórbidos: os sempre obesos e aqueles que já se experimentaram como magros. Para aqueles que não conhecem um corpo de dimensões menores, a construção de uma nova identidade física com o auxílio de uma psicoterapia se faz indispensável. Os que já vestiram manequins bem menores que os atuais, falam de uma insatisfação com o corpo presente e uma busca incessante na tentativa de recuperar o corpo que lhes dava identidade. Os pacientes jovens ( entre 16 e 25 anos ) têm encontro marcado com a sexualidade encoberta e mal definida pela gordura. Os já estabelecidos em relações familiares, experimentam mudanças no sistema familiar e em seus modelos relacionais.

Jung expressou muito bem a unidade psicossomática do ser humano e suas palavras têm justificado a continuidade do trabalho psicológico junto à equipe de profissionais cuja intervenção se dá de forma concreta sobre o corpo:

" Um funcionamento inadequado da psique pode causar tremendos prejuízos ao corpo, da mesma forma que, inversamente um sofrimento corporal pode afetar a psique, pois a psique e o corpo não estão separados, mas são animados por uma mesma vida. Assim sendo, é rara a doença corporal que não revele complicações psíquicas, mesmo quando não seja psiquicamente causada."

A resolução da obesidade enquanto doença crônica que diminui a qualidade de vida de um indivíduo, pode também ser vista como uma possibilidade de recomeço, e de abertura para uma nova dimensão existencial.

Das 54 mulheres e 18 homens ( abril/99 ) que nos foram encaminhados para avaliação, obtivemos os seguintes fatores etiológicos atribuídos pelos próprios pacientes:

Compulsão Alimentar: 35 Ansiedade: 33 Depressão: 26 Obesidade infantil: 19 Prazer em comer: 16 Genética: 7 Puberdade/adolescência: 6 Raiva: 3 TPM: 2 Fome: 1 1 caso: "Como para chamar a atenção e me vingar."

2 caso: "Minha obesidade é meu freio sexual."

O entrevistado de maior peso foi um homem de 38 anos que se referia ao limite sexual imposto pelo corpo obeso. Seu peso na cirurgia era de 178 Kg, mas seu histórico de peso já havia atingido a marca dos 260Kg. O maior diferencial entre pesos mínimo e máximo foi o de uma paciente do sexo feminino de 34 anos: 151Kg ( mín:61-máx:222 ). A causa por ela atribuída ao ganho de peso foi a fome.

Tomando como início uma questão acerca da natureza dessa fome, percebemos que a literatura sobre obesidade não está longe de acertar quando nos diz que no obeso, não há a percepção discriminada das necessidades corporais: fome, sede, sono, frio, ansiedade, tristeza, dor, todos recebem como alívio a comida. A voracidade traz à baila um núcleo de insatisfação e a dificuldade em experimentar limites. Em todos os indivíduos entrevistados ( abril/99 ) o corpo aparece como inimigo. Ele é o depósito de tudo que há de mau e sombrio. Mas o que detectamos é um excessivo controle no plano racional, uma cabeça enorme que só poderia repercutir num corpo grandioso. Ao comer compulsivamente o controle sai de cena, a cabeça tem condições de relaxar via dissociação e o espírito só volta à matéria quando a "orgia alimentar "tem fim por um desconforto gástrico que evoca a consciência do ato de comer.

Corpo é matéria e Mater é mãe. É condizente pensar na boca como veículo de construção das noções de Eu e Não-Eu. Ingerir, digerir e eliminar fazem parte do trajeto alimentar, bem como as noções de cheio e vazio a ele pertencem. A mãe é o primeiro alimento; ela rege o período pré-verbal em que a linguagem do corpo estabelece as relações. De algum modo, os obesos estão amarrados neste período de desenvolvimento, o que os faz permanecer infantis na alma mesmo que em corpos exageradamente crescidos.

A dissociação descrita por indivíduos que se reconhecem como compulsivos alimentares evoca a imagem de nossa festa tipicamente matriarcal: o carnaval. Nela, a euforia do prazer da carne é vivida para depois haver a experiência das "cinzas". O Rei Momo e a ala das baianas são imagens que ilustram bem o valor do corpo e do alimento. Em termos sociais sabemos bem da função de consolo que o nosso carnaval representa para o povo brasileiro. Há todo um movimento de compensação desde a inversão do reinado ( o magro pelo gordo, o rico pelo pobre, o negro pelo branco ) até a quebra de regras e uso de substâncias que relaxam uma cultura que cultua o ego.

Também pela boca entram os "comprimidos para emagrecer", drogas socialmente valorizadas e vendidas sem grandes critérios ou controle. Tanto as drogas anorexígenas quanto a cirurgia bariátrica, de certo modo mantêm os indivíduos passivos em relação ao processo de resolução de sua obesidade, mas as chamadas "boletas", comprometem declaradamente a evolução da vida. Dos 72 pacientes com os quais foi feito um contato ao mínimo, 28 fizeram ou fazem uso de psicofármacos; apenas 2 nunca haviam feito uso de medicações inibidoras

de apetite; 3 relataram tentativa de suicídio com internamento em clínica psiquiátrica. Se por uma vertente podemos ver a carapaça de banha como determinante de um isolamento defensivo que encobre sentimentos de fraqueza e fragilidade, por outra podemos perceber nas dimensões exageradas do corpo um desejo de poder e de conquista de espaço que se materializa. O evitamento social pela hipersensibilidade à rejeição e as atitudes do tipo "tudo ou nada" que em si já É de regra que, como parte da sociedade preconceituosa, o próprio obeso se considere intimamente um ser humano de categoria inferior. Suas expectativas de perfeição o condenam aos sentimentos de impotência e incapacidade quanto à resolução de seu problema. Pertinentes a esses conceitos que fazem de si próprios, sua auto-estima apresenta-se reduzida e por vezes, sobrevém uma agressividade intensa que faz do morder e mastigar constantes seu ato de expressão. Via de regra porém, os obesos não procuram psicoterapia para buscar um sentido em seu ato alimentar desenfreado e sua relação distorcida com o corpo, pois em sua grande maioria consideram o emocional secundário à obesidade.predispõem a frustrações, encontram na comida um prazer imediato e de fácil acesso que exerce a função de tranquilizante moralmente aceito.

Dos transtornos psiquiátricos descritos pelo DSM-IV, é maior a freqüência do TCP ( transtorno de compulsão periódica ), cuja descrição traz os seguintes critérios:

ataques de hiperfagia num período de tempo limitado sem comportamentos compensatórios (exercícios físicos exagerados; aut0-indução de vômitos; abuso de laxantes e diuréticos) sentimento de falta de controle sobre o comportamento alimentar presença de 3 ou mais dos seguintes critérios: comer rapidamente comer até sentir-se incomodamente repleto comer grandes quantidades de alimento sem fome comer sozinho sentir repulsa por si mesmo depressão culpa angústia em relação à compulsão 2 episódios compulsivos semanais por um período mínimo de 6 meses Em casos em que o paciente no pós-cirúrgico evolui com sintomas que indicam a preponderância de humor deprimido e irritabilidade, são usados recursos medicamentosos até que haja uma adaptação à nova realidade. Esses recursos se fazem necessários principalmente pela falta de engajamento desses pacientes operados a um processo de psicoterapia que os envolva intimamente com suas próprias insatisfações. Há sempre a tendência de permanecerem passivos, na esperança de serem emagrecidos sem ônus algum.

A cirurgia bariátrica tem então, como objetivo, libertar o indivíduo de uma doença fatal e comprometedora de sua qualidade existencial, abrindo o campo para que haja tempo para o confronto com questões mais intrínsecas que estarão sempre se fazendo presentes, e não necessariamente ligadas à obesidade, mas vinculadas à condição de ser humano.

BIBLIOGRAFIA

CORDERO, Rafael Alvarez. "Obesidad y Autoestima". Mc Graw-Hill Interamericano. México, 1999

HALPERN, Alfredo; MATTOS, Amélio F. de Godoy; SUPLICY, Henrique; MANCINI,Márcio; ZANELLO, Maria Teresa. "Obesidade". Lemos Editorial. São Paulo,1998

JUNG, C.G. "Estudos Sobre Psicologia Analítica". Collected Works. Vol.7 parágrafo 194. Editora Vozes. Petrópolis, 1981

LIBERMAN, Mara. – Obesidade e Mitos: O Feminino Posto em Questão. São Paulo, Junguiana 12, Revista da SBPA, 1994

PRICOLI, Valdir. Dalla Mamma-Estudo Arquetípico da Grande Mãe em Seus Aspectos Ligados à Mesa Italiana e à Festa de de San Genaro. São Paulo, Junguiana 7, Revista da SBPA, 1989

 
 
 

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